digo que não gosto de rotinas, mas talvez não seja totalmente verdade. a minha vontade de novidade faz-me querer anular as rotinas e não ser capaz de lhes notar o lado bom. voltar a casa, dormir na minha cama, retomar o meu ritmo diário dá-me alguma paz de espírito ao mesmo tempo que me desassossega. para mim a rotina é flexível. e é disso que gosto nela. sou péssima em disciplina e assim serei até ao meu último suspiro. será rotina o mesmo que hábito? diria que não, talvez serei, então, mais um animal de hábitos do que de rotinas. não em tudo, mas em algumas coisas que me fazem sentir em casa. o que a seguir descrevo tornou-se um hábito e só agora aqui sentada dei por ele. alguns fins de semana saio de casa de manhã cedo e vou passear os cães. passo na bertrand do ccb - entrar com eles numa livraria sabe-me inexplicavelmente bem. depois de deambularmos entre corredores, enquanto lhes oiço o arfar de cansaço, compro um livro e seguimos para a fonte do jardim da praça do império. enquanto leio o livro apanho sol, vejo os turistas passar entre uma página e outra; e os cães descansam. hoje não saí de casa com este plano, mas sem pensar nele dei-o como um hábito que que me sabe bem e limpa a alma. crianças andam em cima do muro da fonte observadas pelas gaivotas e casais tiram fotografias observados por mim. ao fundo vejo a rega cruzar os tapetes verdes que cercam a fonte. eu aqui sentada vou lendo, escrevendo e observando. começo a ter de inventar sítios para pôr os livros que compro - mas a verdade é que há sempre espaço para mais um.
domingo, 25 de agosto de 2024
domingo, 5 de maio de 2024
japoni, japoni
finalmente sento-me a escrever. acontece hoje o dia cinco de maio, que não é mais do que um dia no calendário do ano que passa – vinte e quatro. tenho andado com a cabeça à roda e quando assim é faltam-se-me as palavras. à minha frente vejo o meu reflexo na televisão desligada e os meus cães refastelados nas suas camas, como se a vida lhes fosse uma canseira. no chão estão caixas de pizza que encomendei para o almoço e não acabei porque fiquei enjoada. lá fora o dia está cinzento e chove. faz hoje três dias que cheguei da minha viagem do japão. fui-me embora sozinha que é o que mais gosto de fazer. chegar a um sítio novo onde não conheço nada nem ninguém, preferencialmente sem perceber a língua, dá-me uma sensação de liberdade que me é fácil sentir e complicada de pôr em palavras. o japão é um sítio onde há muito queria ir sozinha. sem qualquer misticismo em jogo. queria ir sozinha porque queria viajar sozinha para longe, para um lugar o menos parecido possível com o que tenho diariamente. e pôr-me à prova. o jogo da observação torna-se viciante e facilmente é trocado pelas atrações escritas nas páginas do google. gosto de comer, de andar. de me perder. e de me sentir confiante no meio do caos. gosto de conhecer pessoas, de lhes saber a história. conheço mais do que me dou a conhecer. faço muitas perguntas e sou péssima a responder às que me fazem a mim. esta viagem, felizmente mais no final, foi particularmente difícil por duas razões: corri sozinha para as urgências do hospital de osaka e recebi a notícia da morte da minha avó. a ida ao hospital foi por causa de uma amigdalite repentina, como de resto acontece com as amigdalites. estou sozinha a chorar desesperada com dores a falar com a rececionista do hospital que percebe menos de inglês que os meus cães. sacamos do tradutor e falamos através de tecnologia. o que podia ter sido dito em cinco minutos prolongou-se até uns longos e sofridos trinta minutos. no final deste desespero sou vista por um médico otorrino. nunca aconteceu ser vista nas urgências por um otorrino em portugal. serviço nacional de saúde japão já vai em um, zero. era domingo, e talvez por isso não houvesse ninguém no hospital. mas a verdade é que fui chamada em menos de cinco minutos – não estou a exagerar. dois, zero? talvez. o médico arranhava qualquer coisa de inglês e eu tentava dizer-lhe que não era a primeira vez que tinha amigdalites e que precisava de penicilina. diagnóstico feito. claro que sim, penicilina na veia para a senhora. as camas do hospital, tal como todos os móveis no japão, são quase a rasar o chão. e lá fui eu deitar-me no menos um. no meio do choro e das dores, já a saber que me iam dar penicilina, ria-me com a dificuldade de comunicar. volto para o hostel, onde prolongo a estadia e fico em cativeiro dois dias. porque comidas nem pensar, tenho a garganta quase fechada. e o corpo e a alma não se aguentam de pé. continuo sozinha e o meu apoio é o rapaz da receção. pergunta-me como estou e a chorar respondo-lhe que nada bem. habitualmente já sou uma péssima doente, imaginem o pranto que não foi estando sozinha e longe do calor da família e amigos. no dia seguinte acordo desfeita, parece que nada faz efeito e ligo para casa. estou desesperada. não quero ir de novo ao hospital. no meio deste caos recebo a notícia que não queria: a avó morreu. na altura não consegui dar grande importância, estava já a sofrer com dores e acho que não percebi bem até me passarem as dores. o meu cérebro precisava de se focar numa coisa de cada vez. quando comecei a ficar melhor da amigdalite comecei a processar a minha avó. e estar longe não foi fácil. já todos esperávamos por esta notícia, mas não contava estar sozinha no japão. e de facto, baralhou-me a cabeça. por um lado extasiada de contente por estar a fazer a viagem que quero, por outro, de repente estou a fazer o luto da minha avó. dentro do caos a vida corre-me bem. mas calma com o caos, sou forte, mas não sou de ferro. o lado positivo é que já não tenho mais avós para morrer. continuo extasiada de contente com a viagem ao japão, ainda que em processo de luto. agora toca a focar que amanhã já se trabalha. e eu trabalho para sentir. beijinhos de casa.
quarta-feira, 24 de abril de 2024
navegantes da lua
há um estilo muito específico de tóquio que não posso deixar passar em branco - as navegantes da lua. miúdas, jovens que parecem desenhos animados reais. os cabelos delas podem ter vários penteados e cores diferentes, mas sempre lisos. quem tem caracóis anda de peruca que não me enganam. há as que usam franja de testa completa e as que preferem tranças, uma de cada lado - podem ser compridas ou não. e ainda temos os carrapitos, um de cada lado também, no cocuruto ou na nuca. as cores de cabelo andam entre o amarelo, rosa, azul e lilás num género pastel-metalizado. no corpo vestem mini-saias com folhos e parte de cima a condizer. desconfio de fato-macaco em formato mini-saia. nos pés usam sapatos enormes, maiores que as saias que vestem. os saltos altos gordos e muito compensados fazem-nas caminhar como se fossem póneis na passerelle. no comportamento mostram-se tímidas e muito menininhas. desconfio que só haja navegantes da lua no japão. fica-lhes bem, mas só a elas. quando as observo volto às tardes depois da escola em casa da minha avó a ver desenhos animados: em nome da lua vou castigar-te! e gosto muito.
terça-feira, 23 de abril de 2024
japão olhado por mim
escrevo sobre os desafios até agora, ou talvez apontamentos, sobre o japão. uma das razões porque gosto de viajar sozinha é deixar-me estar mais atenta ao que me rodeia. vamos a alguns pontos que identifiquei.
barreira linguística: esta é fácil demais, no sentido em que todos temos uma ideia de que no japão se fala muito pouco inglês. o google tradutor com imagens tem sido uma boa ajuda. a barreira linguística acaba por ser engraçada porque embora não percebam nada do que dizemos mantêm-se simpáticos e esforçam-se para conseguir comunicar. quando não se conseguem safar sozinhos pedem eles ajuda para que me possam ajudar a mim. é complicado um japonês deixar-nos na mão. querem muito ajudar, nem que seja por gestos. também já aconteceu bastante. eles sorriem muito, eu devolvo, agradeço e sigo caminho.
o metro: às vezes pode ser confuso porque há várias entradas diferentes para a mesma estação, mas correspondem a linhas diferentes. a quantidade de linhas é absurda, mas no final está tudo muito bem indicado. e também aqui o google maps ajuda bastante. eis que em alturas de maior cansaço apetece largar tudo e apanhar um taxi - que é muito muito muito mais caro. é a diferença entre gastar um euro ou quinze. nestas alturas em que apetece largar tudo faço uma pausa e paro de procurar. vou buscar uma bebida, entro numa loja e desvio o foco de stress. quando volto à saga já passou o desespero e já estou novamente encontrada. sigo caminho, poupei uns euros e geri-me.
comem muito rápido: os japoneses comem muito rápido. sorvem as ramen como se fossem copos de água. nada contra o barulho. para mim não deixa de ser nojento, mas entra a adaptação em campo e também eu sorvo os noodles. já várias vezes chegou a comida ao mesmo tempo que aos vizinhos do lado e quando ainda vou a meio eles já acabaram e já foram embora.
restaurantes: há muitas pessoas a comer sozinhas em restaurantes. há até vários que são específicos para estes clientes. são balcões corridos, virados para a parede ou para a cozinha, com vários compartimentos separados por mini-biombos. cada compartimento é um lugar. o pedido é feito e pago numa máquina logo à entrada. não é preciso falar com ninguém. escolhem, pagam, comem (rápido) e vão-se embora. daquilo que vou percebendo, a maior parte destes clientes sozinhos são homens.
não cruzam as pernas: seja no metro ou em restaurantes vejo poucos japoneses a cruzar as pernas. na escola são ensinados a sentarem-se com modos - os dois pés no chão e costas direitas. o cruzar de pernas pode ser identificado como desleixe. apercebi-me disto quando cruzei as pernas no metro e toquei sem querer na pessoa do lado. pedi desculpa, mas percebi que houve um desconforto fora do que estou habituada. quando olhei em volta vi que era a única com as pernas cruzadas. rapidamente me pus em sentido. efetivamente, o movimento e a posição de cruzar as pernas mais rapidamente incomoda alguém do que se não o fizermos.
os bancos são baixos: esta observação toca-me especialmente na alma porque noto diferença no conforto quando me sento aqui comparando com quando me sento nos transportes e restaurantes da europa. aqui chego sempre totalmente com os pés ao chão. e isso aquece-me o coração. e as costas também agradecem.
o tamanho das calças: outro ponto que me vai direto à alma. aqui a maior parte das calças são curtas. as japonesas são baixas e, por isso, as calças também. para quem costuma estar dependente de bainhas isto é um super plus. já comprei dois pares na gigantesca uniqlo no bairro de ginza.
as portas dos elevadores: não vai sair daqui grande ciência, giram as expectativas, por favor. nos elevadores quando se carrega no botão de “fechar portas” as portas fecham imediatamente. não existe a necessidade de carregar insistentemente como se estivéssemos a ser eletrocutados. é um detalhe, mas é apaziguador de tão bem que funciona.
não há caixotes do lixo na rua: por alguma razão que ainda não descobri não existem quase lixos na rua. e nem por isso as ruas são sujas. o que se vai vendo mais ainda são os lixos só para as garrafas de plástico porque estão ao lado das vending machines que estão por todo o lado. o resto do lixo é deitado fora em casa ao final do dia. tenho-me safado a utilizar os lixos das casas de banho que vou encontrando e que são bastantes. há mais casas de banho que caixotes do lixo na rua.
respeito nas entradas/saídas: à entrada e saída das carruagens do metro, restaurantes e lojas não há dúvidas sobre quem avança primeiro. e aqui, em caso de dúvida, percebe-se bem quando a pessoa do lado não é japonesa, mas sim chinesa. os japoneses respeitam, os chineses são bons a desrespeitar. dúvidas rapidamente deixam de existir quando se observam os comportamentos de ambos.
não há porque ter medo: tenho notado por várias situações que o japão é um lugar seguro. os clientes chegam aos cafés e deixam os computadores e mochilas na mesa enquanto vão fazer o pedido. não ficam de olho em nada, nem sequer olham para trás. abandonam por completo confiantes de que as coisas lá estarão quando voltarem - e estão. hoje já é dia de escola e vi muitos miúdos muito pequenos sozinhos no metro e na rua. na maior parte das vezes andavam pelo menos aos pares, mas são muito pequenos. diria com uns cinco anos. ao início, quando ainda não tinha percebido que andavam crianças sozinhas na rua, achei que fosse um anão a passar por mim. ando na rua à noite e nunca fui olhada de alto a baixo nem nunca ninguém se meteu na minha bolha.
sempre achei que seria boa ideia viajar sozinha para o japão. a única coisa menos boa é que efetivamente são pouco dados a socializar, ainda que pouco. as conversas que tenho tido por aqui são com pessoas ocidentais - que também elas estão sedentas de contacto em inglês. beijinhos, arigatou gozaimasu.
sábado, 20 de abril de 2024
rir em silêncio
são sete da manhã, dormi cinco horas. outras duas vi o tempo passar enquanto me rebolava na cama de um lado para o outro. o jet lag poucas vezes perdoa os viajantes. já estou na rua e há muito movimento escondido. parece haver poucas pessoas na rua, mas estão enfiadas nas passagens fechadas, nos cafés e restaurantes. muitos ainda estão fechados, mas os que estão abertos já se lhes nota clientela como se não fossem sete da manhã de sábado. ando perdida nas ruas, demorei a encontrar o starbucks onde estou agora. também aparentemente vazio, mas cheio de pessoas. a maior parte sozinhas. não fazem barulho para além do estritamente necessário: abrir e fechar portas, teclas de computador e os passos a andar. para além disto ouve-se a música ambiente. pessoas aparecem por todos os lados, mas não as noto porque fazem por não se notar. chegam, pousam as coisas e desaparecem escada abaixo para ir fazer o pedido. é certo que aqui ninguém rouba coisa nenhuma, de outra forma não teria visto já umas três pessoas a deixar o portátil na mesa. alguns andam com um guizo à cintura e ainda não percebi porquê. duas amigas vestidas e penteadas a rigor japonês chegam com os seus frapés de matcha - são verdes e o matcha é famoso por cá. pode ser outra coisa, mas apetece-me que seja matcha para ser mais exótico. observo-as e vi uma delas falar sem a ouvir. não que esteja barulho, que não está, e muito menos sou surda - embora já tenha tido ouvidos mais capazes. mas falam baixinho, muito baixinho. estão divertidíssimas. riem e falam, mas estão em mute.
sexta-feira, 1 de março de 2024
supermercados a fechar
a minha avó gostava muito de ir ao supermercado e sem querer sigo-lhe as pisadas. gosto de ir ao supermercado, principalmente fora da hora de ponta. gosto do silêncio do supermercado na última hora antes de fechar. oiço a música de fundo e canto-a baixinho enquanto escolho frutas e legumes. olho em volta e estão pessoas sozinhas entre os trinta e os cinquenta. não há famílias nem pessoas sénior. nem miúdos a comprar gomas depois da escola. não se avistam carrinhos. só cestos ou mesmo as próprias mãos. às oito da noite com frio e chuva não se fazem as compras da semana. o ambiente é calmo. os clientes passeiam-se entre os corredores e os repositores trabalham sem pressa. não há filas na caixa. muito menos se ouvem enxurradas desenfreadas de bip, bip. fico muito tempo no corredor dos sabores do mundo. gosto de olhar para tudo e pensar que no que posso cozinhar com cada uma das coisas que se me aparece à frente: leite de côco, teriyaki, noodles, caris vários, gengibre, pasta de gengibre, folha de caril. vou aqui, ali. volto atrás. lembro-me do aipo e fico mais uma temporada nos legumes. olho para todos e não se me ocorre nada. aliás, ocorre que vou estar fora e não vale a pena gastar dinheiro para os deixar estragar. sigo em frente e chego às carnes – bom bom era fazer um prego. e aí vou eu, de corredor em corredor a magicar receitas enquanto continuo a cantar aquilo que calha ouvir. troco algumas, poucas, interações com pessoas que nunca vi. e talvez as volte a ver, mas não me lembrarei delas. laivos de sorrisos educados no supermercado a fechar sabem-me melhor do que alguma vez pensei. estou a chegar aos trinta e cada vez mais gosto do silêncio. olá, boa noite. sim, um saco, por favor.