segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

tenho a alma a falar alto

não tenho filhos e gosto de não os ter. há várias razões que me fazem afirmar isto com a determinação que me orienta diariamente. vou começar a debitá-las, a ordem é totalmente aleatória já que todas têm sensivelmente o mesmo peso. vamos lá. não tenho de levantar miúdos para ir para a escola quando já luto diariamente comigo para abrir os olhos e enfrentar o mundo. não tenho de tratar de pequenos almoços às sete da manhã. não tenho interrupções nos meus ciclos de sono causadas por choros de hora em hora. ou pesadelos. ou “mãe, tenho sede”. ou “mãe, tenho monstros no quatro”. mãe, uma merda. não há mãe nenhuma. e monstros também não. não tenho de pensar em jantares todos os dias. não tenho de cozinhar todos os dias. não tenho crianças a chamarem-me mãe trinta vezes a cada cinco minutos e a roubarem-me o pouco de paciência que me resta. não tenho de poupar a pensar na escola, na roupa, no supermercado, nas férias. só tenho de comprar os meus legumes, os meus iogurtes – e mesmo assim já deus sabe o rombo na carteira. só tenho de pagar um lugar de avião. mais. há mais. birras, aturar birras. mãe, quero isto. mãe, quero aquilo. e eu quero que te cales. estou a ver-me em modo passiva agressiva em privação de sono. com jeitinho levava as crianças a fazer cocó e chichi à rua. despachava todos de uma só vez – aqui incluo as crianças nas rotinas dos cães. há várias razões que me fazem gostar de não ter filhos. o que não invalida tê-los em alguma altura, lá para os oitenta. neste momento estou sem estofo e vontade para ter pessoinhas a moerem-me o juízo vinte e quatro horas por dia. se eu nem um homem aguento, imagino uma criança que dependa de mim. sai diabo. são quase onze da noite e tenho que ir dormir. já noto os olhos cemicerrados. estou toda torta no sofá e com dores pela espinha acima, adentro, abaixo. amanhã trabalho, o trabalho normal que me dá o conforto da casa que habito, mas que me dá um tremendo desconforto mental. trabalhamos mais do que aproveitamos a vida e isso está demasiado errado. acorda cedo, trabalha, chega cansada a casa. janta. vê televisão, lê um bocado. cama. e o ciclo repete-se até ao fim de semana seguinte. há poucas coisas que me dêem tanto prazer na vida do que acordar sem horas. não precisa de ser tarde. mas sem horas. sem despertador. sem massacrador matinal. que horror, acordar com o telemóvel a apitar-me aos ouvidos é das piores experiências de estar viva. e acontece em mais de metade dos dias que um ano compõe. voltei às artes. voltei a pintar com pincéis. podia estar a sair-me bastante pior. gostava de conseguir vender algumas das minhas artes. será que alguém as compra?